Chamada para o nº 23 — Morrer pelas próprias mãos: literatura e suicídio

2018-08-04

A literatura sempre foi palco dos mais convidativos à reflexão sobre os meandros da morte voluntária. Se visitamos os destinos trágicos da Grécia Antiga, por exemplo, ainda escutamos o eco dos mensageiros que se depararam com os corpos de Jocasta e Antígona pendendo da corda. Mais adiante, o medievo pinta o suicídio em cores de amor cortês, Dante reserva a ele um dos cenários mais elaborados de seu Inferno, Shakespeare dá vida a uma dezena de personagens suicidas; Goethe, por meio das missivas de Werther – e todos os românticos em sua esteira –, o transforma em tentativa de abraço do Absoluto; Flaubert e Tolstoi não conseguem salvar suas heroínas do arsênico e da trilha do trem; Dostoiévski dá ao suicídio de Kiríllov uma dimensão filosófica. Ainda: em Ulysses, de Joyce, o pai de L. Bloom é suicida. Em Faulkner, temos Quentin; em Virginia Woolf, Septimus Warren Smith. Sylvia Plath, assim como Anne Sexton, deixa vários poemas sobre o ato limítrofe e se transmuta em Esther Greenwood em A redoma de vidro. Mais recentemente, temos Bernhard, Eugenides, Roth, Styron, Vila-Matas, Evandro Affonso Ferreira, Reyes, Kertész, di Benedetto, Busi, Kane, Keret, Bernardo Carvalho, Wallace, Lísias, de Leones... Todos esses autores e autoras contemplaram de alguma forma, com grande fôlego e sensibilidade artística, o impasse daqueles que decidiram morrer pelas próprias mãos, e muitos outros ainda poderiam ser acrescentados à lista.

A mesma lógica vale para uma segunda lista: aquela dos literatos que acabaram optando pela morte voluntária, cravando o tema não apenas em tinta, mas também em sangue: Nerval, Castelo Branco, Antero de Quental, Pompeia, London, Sá-Carneiro, Rigaut, Florbela, Maiakovski, Crane, Quiroga, Woolf, Pavese, Hemingway, Plath, Mishima, Pizarnik, Sexton, Ana C., Koestler, Márai, Kane, Thompson, Wallace, e muitos, muitos outros.

No campo dos estudos literários, embora em pequeno número, temos contribuições significativas sobre a questão: um bom exemplo é o sempre lembrado O deus selvagem (1972), de A. Alvarez. Ainda que rejeitado por muitos, o estudo empreendido pelo autor, tanto em termos de abrangência quanto em se tratando de oferecer alguma teorização sobre as relações entre suicídio e literatura, permanece atual, e constitui bom ponto de partida para as reflexões que aqui pretendemos erigir. No Brasil, devemos a Ana Cecília Carvalho a expressão “poética do suicídio”, cunhada a partir de seus estudos psicanalíticos sobre a obra de Sylvia Plath. À expressão de Carvalho alinhavamos outra: o constante entrelaço entre autoaniquilamento e literatura permite, em última instância, a composição de um “mosaico suicidológico”. Nesse sentido, adotando uma visada interdisciplinar, o mosaico se abre ao diálogo com diversas áreas do conhecimento, reivindicando a contribuição de muitos autores: de Platão a Sêneca, de Hume a Schopenhauer, de Camus a Cioran, Agostinho, Burton, Kierkegaard, Freud, Durkheim e Solomon, limitamo-nos a apenas alguns exemplos de possibilidades de diálogo.

Diante dessas questões, a presente edição de Criação & Crítica procura contemplar os mais variados pontos de encontro entre a literatura e o ato que, para Camus, era o “mito decisivo”, considerando manifestações literárias das mais diversas épocas e em todos os gêneros e subgêneros possíveis, apostando na pluralidade de perspectivas de análise e desdobramentos teóricos. Dando ensejo ao interesse crescente de pesquisas sobre o assunto, o dossiê pretende reunir artigos, ensaios, resenhas, traduções e exercícios de estilo motivados por indagações como as seguintes: de que forma, e por via de quais procedimentos estéticos, o suicídio é representado na literatura? Qual é a influência do autoaniquilamento sobre a imaginação criativa? Até que ponto são borrados os limites entre ficção e biografia no caso daqueles escritores que morreram pelas próprias mãos? Em que medida as perspectivas literárias sobre a morte voluntária se aproximam ou se distanciam das perspectivas de outras áreas do conhecimento? Pensando na morte do autor, a partir de Barthes e outros, e na experiência literária enquanto morte, a partir de Blanchot, seria possível delinear uma teoria da escritura literária enquanto suicídio? Por fim: de que forma se configura o tema nas manifestações literárias mais diversas, e como a literatura pode contribuir para sua compreensão?

Os trabalhos devem ser enviados até 30 de novembro de 2018 através da página da revista:
http://revistas.usp.br/criacaoecritica